quarta-feira, 17 de março de 2010

conversas de café III

(Dois amigos sentados numa mesa de café junto da janela. Lá fora é noite.)

- Há muito tempo que não o vejo.
- Eu também não.
- Creio que da última vez estávamos juntos.
- Sim, na praia.
- Numa esplanada.
- O que terá acontecido entretanto?
- Esquecemo-nos dele.
- Não acredito. O sol é como os amigos. Mesmo quando não pensamos nele, sente-se falta.


(O lado de fora da janela começa a clarear lentamente, até que o sol entra pelo café, inundando-o de luz.)


rla

sábado, 13 de março de 2010

serialkiller


-->Tinha por hobby ir pela cidade à descoberta de emoções e sensações do quotidiano. Misturava-se com a multidão e vagueava sem destino, de máquina fotográfica na mão. Realizava-o apenas por prazer e nunca com objectivos profissionais. Raramente divulgava as suas imagens e se o fazia era entre os amigos mais íntimos! Isto tornara-se num jogo, um desafio viciante. Aprisionar dezenas de rostos naquela pequena caixa negra, todos diferentes, representantes da raça humana. -->Mas o mais fascinante era o processo de aprisionamento. Os rostos tinham de ser retirados ao seu dono sem que este se apercebesse. Era como se um caçador conseguisse acertar na presa sem que esta realmente sentisse o tiro, e o mais surpreendente, sem que a presa perdesse a vida. A única forma de caçar sem deixar dor nem sangue. -->A partir do instante do disparo da máquina, cada rosto captado passava a ser seu. Depois, no regresso a casa após cada expedição citadina, fechava-se na câmara vermelha, que consistia numa arrecadação sem janelas onde tinha montado o seu pequeno estúdio fotográfico. Era onde repousavam os troféus de caça, banhados por uma luz emitida por uma lâmpada vermelha que os apaziguava dos ruídos exteriores a que tinham estado sujeitos até então, emergidos em recipientes, colocados ao longo de uma bancada que se estendia a todo o comprimento da parede, cheios de líquido revelador, assim chamado por revelar ao mundo os segredos enclausurados na máquina. Este era o ponto de partida para um outro momento delirante. Sentava-se a observar o nascimento do rosto, via aparecer as linhas da boca, do nariz, dos olhos, os traços que definiam as rugas e as expressões, os contornos do queixo, da testa, os fios do cabelo e, ponto por ponto, construía um personagem. Imaginava o que estaria ele a ver naquele momento, para onde iria, de onde vinha. Recuava a pouco e pouco no seu passado, imaginava onde vivia, a casa que o abrigava, quem o acompanhava, a sua profissão, as suas rotinas diárias, as suas roupas, aquilo que ele mais gostava, aquilo que ele detestava, o que o fazia feliz, o que o deixava mais triste. E apontava tudo num caderno de linhas. No fim dava-lhe um nome. Esse nome escrevia-o por baixo da fotografia colada na capa do caderno. No fim de todo este processo sentia-se completo, como que saciado de um manjar dos deuses, como se acabasse de cheirar o perfume de uma ninfa.



rla