domingo, 30 de dezembro de 2007

uma cidade


Uma cidade pode ser

apenas um rio, uma torre, uma rua

com varandas de sal e gerânios

de espuma. Pode

ser um cacho

de uvas numa garrafa, uma bandeira

azule e branca, um cavalo

de crinas de algodão, esporas

de água e flancos

de granito.


Uma cidade

pode ser o nome

dum país, dum cais, um porto, um barco

de andorinhas e gaivotas

anncoradas

na areia. E pode

ser

um arco-íris à janela, um manjerico

de sol, um beijo

de magnólias

ao crepúsculo, um balão

aceso

numa noite

de Junho


Uma cidade pode ser

um coração,

um punho.




albano martins

sábado, 29 de dezembro de 2007

Os pratos da balança

´


Por entre as rochas um rapaz, nas mãos levando uma balança, avança em direcção ao mar. Vai procurar pesá-lo. Num dos pratos, o mar há-de revolver-se, debater-se, rebentar, há-de trazer à superfície a força das entranhas e atrair o céu, há-de-o fazer precipitar-se até com ele se confundir, e as próprias rochas através das quais o rapaz segue hão-de pesar no prato ferozmente. Imperturbável, o rapaz colocará no outro prato o seu sorriso.


luís miguel nava

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

as crianças são loucas!

´


Quico vivia fechado em casa, sem amigos, prisioneiro da crença das pessoas e da sua conformação. Coleccionava as mais incríveis e disparatadas coisas: conchas que os pescadores lhe ofereciam, folhas secas que apanhava no chão no largo, caixas de fósforos, actores da bola que se vendiam na sua taberna, pedrinhas do rio, papéis de rebuçados, pratas de chocolate, berlindes de vidro, pagelas de santos, borboletas.
Tudo isto faz parte de um mundo que ele criou em segredo. O seu mundo. Aquele lugar inventado onde ele é ele e não aquilo que querem que ele seja. Neste mundo ele tem um nome diferente, outros pais, outra família e vive numa cidade que se chama Luxa María.
Fechava-se horas no quarto brincando dentro deste mundo imaginário, de onde só saía quando o chamavam insistentemente por qualquer motivo. Esta reclusão de Quico trazia a sua mãe preocupada, pressentimentos de mãe. Um dia, para aumentar ainda mais o seu temor, ouviu o filho falar com alguém que era suposto estar no quarto com ele. Colocou o ouvido à escuta e ouviu o filho referir dois nomes: Xenu-Xenu e Xunólinha e falar com eles como se estivesse à conversa com outras crianças da sua idade. Assustada, a mãe pensou que se tratava de espíritos, talvez anjinhos vindos de propósito do céu, voando nas suas asas brancas. Seriam alguns querubins ou outros meninos da corte celestial? Ou estaria o filho enlouquecendo? Talvez fossem demónios a tentá-lo, não aconteceu o mesmo a Cristo e a tantos santos da Igreja?, aventava a avó.



joaquim mestre, in A Imperfeição do Amor

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

adão e eva


Quando o dr. Bruno voltou à vinha, o encontro com Guiomar foi outra coisa. O sonho da rapariga tinha lavrado de tal maneira, que o médico viu logo que pisava terreno conquistado. E não perdeu tempo.
- Bravo! Até que enfim a vejo impecável...
- Ah, sim?! - respondeu ela, ao mesmo tempo desconcertada e lisonjeada.
- É que o penteado de ontem ficava-lhe horrivelmente! E também, com franqueza, não gostei dos sapatos... Que infeliz ideia foi aquela dos rasos?! Não a quis desgostar, e calei-me. Mas semelhantes disparates ficam bem numa inglesa de dentes postiços. Agora em você! E o vestido... Valha-a Deus! Escolha outra modista! Estava cheio de medo de a encontrar outra vez ensacada! Felizmente que a Guiomar arrepiou caminho e veio ao encontro dos meus desejos...
Era com redes assim, arbitrárias e casuais, que ele apanhava a presa.
- Ainda bem! - alegrou-se ela, submissa como o seu coração vencido.
- Sim, porque a Guiomar tem condições para ser uma rapariga elegante. O essencial é que faça por isso...
O balde de água fria entrava também na manobra. Descia a vítima do céu que a erguera, para a poder amparar logo a seguir cavalheirescamente.
- Não sei se sabe que o fundamental nas mulheres é o revestimento. É isso que lhes dá, digamos, categoria social. O resto são atributos sem importância. A pedra de toque de qualquer personalidade feminina está toda aí. Um bom casaco de peles diz-nos logo tudo a respeito da dona. Que idade tem, se é bonita... Até o seu carácter revela... Eu passo diante de uma montra, vejo um chapéu exposto, e já sei quem o vai usar. Quase que podia afirmar com precisão qual é o tom de pele da futura possuidora...
- Palavra?
- É o que lhe digo. Nisso sou muito sensível. O mau gosto repugna-me visceralmente. Quando noto que uma rapariga excepcional como você falha num pormenor de toilette, desinteresso-me imediatamente. Olhe, diga à costureira que lhe não suba tanto as golas, por exemplo... E precisa de usar uma meia mais justa, que lhe molde bem a curva da perna...
Despia-as primeiro com sorridente e terna audácia, e cobria-as depois de luxúria metódica e fria. (...) O hálito quente do médico aproximou-se, como um vento suão que ali surgisse por magia.
- Não... - disse baixo e sem forças, sem lhe fugir. - Não... precisamos ter juízo.
Ainda não acabara, e já uma videira de diagalves estendia o manto policromado das folhas sobre o beijo apetecido.
- Somos malucos... - protestou, num suspiro.
- Malucos, porquê?
- Não sei, Mal nos conhecemos...
- Ninguém se conhece. Nem o amor tem nada que ver com conhecimentos. Os apaixonados procuram-se às cegas... Veja se compreende e se me compreende!
Compreendê-lo?! De que maneira, se não tivera ainda tempo sequer para um minuto de relfexão? De positivo sabia apenas que o desejava veementemente, numa avidez de terra em pousio.
- Isto é tudo tão inesperado, tão fantástico...
Aquela instintiva desconfiança contrariou-o. Pelo menos era do jogo mostrar-se contrariado.
- Está arrependida?
- Oh, não!... Pelo amor de Deus. São coisas que me passam pela cabeça...
Até há pouco tempo ainda tivera um fosso de orgulho e de certezas sociais a cercá-la e a defendê-la. E via-se agora despojada de todas as protecções, vulnerável, à mercê de uma onda que a arrastava sem comiseração.
- Eu bem pedi à Guiomar que me não desiludisse...
- Mas estou a desiludi-lo?
- Em parte. E o melhor é pormos fim já a tudo isto. Eu não apareço mais, e pronto. A Guiomar fica com o seu convencionalismo, e eu com a minha eterna solidão de incompreendido... Mas amigos, valeu?
Era o golpe final. Depois de a fera domada, escancarava-lhe as portas da jaula generosamente.
Ela então, aterrada, encostou-lhe a cabeça ao ombro, quase infantilmente, num abandono de rola desprotegida. E ele serenou-a.
- É uma tonta, esta pequena!
Afagava-lhe o rosto carinhosamente, sábiamente, terapêuticamente.
- Já passou...
- Pronto, então não se fala mais nisso.
Anestesiada, podia agora operar à vontade. E tomou-a nos braços.
- Que calor! - gemeu ela, ao fim de um longo silêncio de carícias até ali só pressentidas.
Abafava, realmente, e até nas sombras a vida ardia insofrida.
- É um horror!


miguel torga, in Vindima

domingo, 23 de dezembro de 2007

Rifão Quotidiano

*

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar o que acontece


mário-henrique leiria, in Novos Contos do Gin

a praia

*


Continuou a andar, devagar, olhando as pedras das beira da estrada, pensando vagamente no passar do tempo e sem se preocupar muito com isso, as pequenas ervas rasteiras a estalarem ao de leve debaixo dos sapatos. Um carro vermelho e veloz passou por ele, buzinando. Desviou-se um pouco.
Começou a descer o carreiro em direcção à praia, lá em baixo.
Foi caminhando pela praia deserta, com aquela dificuldade teimosa que dá a areia seca e solta. aproximou-se mais da beira-mar, para fazer menos esforço com as pernas. Parou um pouco e ficou a olhar o mar repetitivo que ia e vinha, sempre. Continuava a pensar no tempo que também estava indo e vindo à sua volta, mas sem tirar quaisquer conclusões nem tentar fazê-lo. Olhou um pouco mais o mar e prosseguiu.
Quase no fim da praia sentou-se, com extremo cuidado e algum cansaço, numa pedra larga e confortável.
Ficou a observar, com atenção desnecessária, as rochas que ali ao fundo cortavam a praia com exactidão e seguiam pelo mar dentro.
Um buzinar distante e súbito fê-lo voltar a cabeça. Lá em cima, na estrada, passava um carro vermelho e veloz.
Depois notou uma figura que, lenta, começava a descer o carreiro. Indiferente, ficou a observá-la.
A figura começou a avançar na sua direcção, aproximou-se da beira-mar. Parou e assim ficou algum tempo. Retomou a marcha, ajudada pela areia mais resistente e continuou a aproximar-se.
Então, com algum esforço dos olhos um pouco míopes, viu-a com nitidez.
Viu-se, caminhando pela praia, em direcção a si.


mário-henrique leiria, in Novos Contos do Gin

sábado, 22 de dezembro de 2007

Aparição



Não foi a Senhora de Fátima que me apareceu, como aos pastorinhos. Mas a Literatura. Escritor, ajoelhei, logo.
"Que diabo andam os teus amigos para aí a fazer? Artigos, cartas, reuniões, colóquios?" "Mas eu tenho alguma coisa a ver com isso? O meu domínio é o da obscuridade. Sempre que um de vós se levanta, com as luzes da sala todas acesas, para falar de mim, eu faço por conversar com a empregada, lá atrás, porque depois, tenho que ajudá-la a varrer aquilo."


sebastião alba

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

serenata à chuva



Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.


josé gomes ferreira