segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

adão e eva


Quando o dr. Bruno voltou à vinha, o encontro com Guiomar foi outra coisa. O sonho da rapariga tinha lavrado de tal maneira, que o médico viu logo que pisava terreno conquistado. E não perdeu tempo.
- Bravo! Até que enfim a vejo impecável...
- Ah, sim?! - respondeu ela, ao mesmo tempo desconcertada e lisonjeada.
- É que o penteado de ontem ficava-lhe horrivelmente! E também, com franqueza, não gostei dos sapatos... Que infeliz ideia foi aquela dos rasos?! Não a quis desgostar, e calei-me. Mas semelhantes disparates ficam bem numa inglesa de dentes postiços. Agora em você! E o vestido... Valha-a Deus! Escolha outra modista! Estava cheio de medo de a encontrar outra vez ensacada! Felizmente que a Guiomar arrepiou caminho e veio ao encontro dos meus desejos...
Era com redes assim, arbitrárias e casuais, que ele apanhava a presa.
- Ainda bem! - alegrou-se ela, submissa como o seu coração vencido.
- Sim, porque a Guiomar tem condições para ser uma rapariga elegante. O essencial é que faça por isso...
O balde de água fria entrava também na manobra. Descia a vítima do céu que a erguera, para a poder amparar logo a seguir cavalheirescamente.
- Não sei se sabe que o fundamental nas mulheres é o revestimento. É isso que lhes dá, digamos, categoria social. O resto são atributos sem importância. A pedra de toque de qualquer personalidade feminina está toda aí. Um bom casaco de peles diz-nos logo tudo a respeito da dona. Que idade tem, se é bonita... Até o seu carácter revela... Eu passo diante de uma montra, vejo um chapéu exposto, e já sei quem o vai usar. Quase que podia afirmar com precisão qual é o tom de pele da futura possuidora...
- Palavra?
- É o que lhe digo. Nisso sou muito sensível. O mau gosto repugna-me visceralmente. Quando noto que uma rapariga excepcional como você falha num pormenor de toilette, desinteresso-me imediatamente. Olhe, diga à costureira que lhe não suba tanto as golas, por exemplo... E precisa de usar uma meia mais justa, que lhe molde bem a curva da perna...
Despia-as primeiro com sorridente e terna audácia, e cobria-as depois de luxúria metódica e fria. (...) O hálito quente do médico aproximou-se, como um vento suão que ali surgisse por magia.
- Não... - disse baixo e sem forças, sem lhe fugir. - Não... precisamos ter juízo.
Ainda não acabara, e já uma videira de diagalves estendia o manto policromado das folhas sobre o beijo apetecido.
- Somos malucos... - protestou, num suspiro.
- Malucos, porquê?
- Não sei, Mal nos conhecemos...
- Ninguém se conhece. Nem o amor tem nada que ver com conhecimentos. Os apaixonados procuram-se às cegas... Veja se compreende e se me compreende!
Compreendê-lo?! De que maneira, se não tivera ainda tempo sequer para um minuto de relfexão? De positivo sabia apenas que o desejava veementemente, numa avidez de terra em pousio.
- Isto é tudo tão inesperado, tão fantástico...
Aquela instintiva desconfiança contrariou-o. Pelo menos era do jogo mostrar-se contrariado.
- Está arrependida?
- Oh, não!... Pelo amor de Deus. São coisas que me passam pela cabeça...
Até há pouco tempo ainda tivera um fosso de orgulho e de certezas sociais a cercá-la e a defendê-la. E via-se agora despojada de todas as protecções, vulnerável, à mercê de uma onda que a arrastava sem comiseração.
- Eu bem pedi à Guiomar que me não desiludisse...
- Mas estou a desiludi-lo?
- Em parte. E o melhor é pormos fim já a tudo isto. Eu não apareço mais, e pronto. A Guiomar fica com o seu convencionalismo, e eu com a minha eterna solidão de incompreendido... Mas amigos, valeu?
Era o golpe final. Depois de a fera domada, escancarava-lhe as portas da jaula generosamente.
Ela então, aterrada, encostou-lhe a cabeça ao ombro, quase infantilmente, num abandono de rola desprotegida. E ele serenou-a.
- É uma tonta, esta pequena!
Afagava-lhe o rosto carinhosamente, sábiamente, terapêuticamente.
- Já passou...
- Pronto, então não se fala mais nisso.
Anestesiada, podia agora operar à vontade. E tomou-a nos braços.
- Que calor! - gemeu ela, ao fim de um longo silêncio de carícias até ali só pressentidas.
Abafava, realmente, e até nas sombras a vida ardia insofrida.
- É um horror!


miguel torga, in Vindima

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